Um parto sem dor – vidas anestesiadas.

No fim-de-semana passado, estive num encontro de 5 dias na Quinta da Enxara. Sinto que ainda estou a aterrar. Foram dias intensos, com várias viagens na linha do tempo e do espaço, que me trouxeram várias memórias, várias dores e feridas à consciência. Entre elas revivi a experiência do parto do meu filho, um parto sem dor.

Tive a benção de ser acompanhada por 4 Mulheres de M grande, mulheres de amor e acompanhantes da alma, bruxas e parteiras da consciência. De lá trouxe perdão, amor, confiança e mais vida.

O despertar da memória.

Foi no exercício da respiração holoscópica que a memória do parto do meu filho foi desperta. As nossas guias bem que nos tinham avisado que isso poderia acontecer. Aquilo que o exercício me trouxe, foi consciência, e a possibilidade de reviver essa estória de maneira diferente.

Durante a gravidez, os meus sentimentos perante o parto foram ambivalentes. Por um lado sentia o medo do desconhecido, o medo das dores, e principalmente o medo de possíveis complicações. Como a gravidez corria bem, e o meu médico disse-me que “a minha mãe me tinha feito muito bem feita” referindo-se às minhas ancas e pélvis, esses medos conseguiam ser apaziguados por pensamentos de esperança e de força, “se as outras conseguem eu também consigo!”.

O parto como uma experiência xamânica.

Eu via, e ainda vejo, o parto como uma experiência espiritual, como se a mulher fosse um portal entre dimensões. Acredito que a o parto pode ser vivido como uma experiência xamânica, uma experiência de poder, de empoderamento da mulher. Por estas razões, sempre disse que gostava de ter um parto sem epidural. Por medo, insegurança e falta de apoio externo, nunca pus a hipótese de dar à luz em casa, no entanto, queria “naturalizar” ao máximo o meu parto. O meu plano era gerir as contrações o máximo de tempo possível em casa, para depois ir para a maternidade. Apesar disto tudo, tive sempre consciência de que não sabia se iria ser capaz, e se à ultima da hora não iria pedir a famosa epidural.

Mas como sempre a vida troca as voltas, e o Lucas nasceu um mês mais cedo. Como as águas rebentaram antes da altura prevista, tive de ir logo para a maternidade. Porque fui internada às 2h da manhã, o meu marido não pôde ficar comigo e levaram-me para um quarto às escuras onde dormiam mais 3 mulheres com a “ordem”, “procura descansar”. Visto que estava a poucas horas de dar à luz o meu filho e perto do grand finale, sentia-me com demasiada adrenalina para pregar olho.

O sistema hospitalar.

Já deitada na cama, no quarto escuro com mais 3 mulheres as contrações começaram a surgir, e cada vez com mais intensidade. Tive necessidade de começar a andar, e fui para o corredor, vazio, frio e a meia luz, para não incomodar as minhas companheiras de quarto. Fui observada pelas enfermeiras que me informaram que estava a dilatar rapidamente e perguntaram-me se queria epidural. Respondi que não e voltei para o meu quarto às escuras, onde dormiam 3 mulheres desconhecidas, também elas à espera do seu grand finale.

As contrações continuavam a aumentar e cada vez era mais difícil estar parada. Mais uma vez fui observada pelas enfermeiras, que me confirmaram que a dilação prosseguia rapidamente. Voltaram a perguntar-me se queria epidural, advertendo-me que a partir de um certo ponto, não poderia ter anestesia mesmo que quisesse. Voltei a recusar. E voltei para o meu quarto escuro. Sentia-me ambivalente. Sentia-me por um lado capaz de avançar para um parto sem anestesia, mas por outro sentia-me sem qualquer aliado, ou conforto externo, nesta minha jornada.

O sono era cada vez maior e eu quase adormecia entre as contrações com intervalos de 5 minutos. Sentia-me sozinha, cansada, e pouco respeitada e acarinhada na minha situação de mulher que ia ter o seu primeiro filho. Dando-me conta do turbilhão que sentia e lamentando as circunstâncias pouco confortáveis em que me encontrava, decidi pedir a epidural.

“Anestesiamo-nos da vida com muitas teorias novas, muitas terapias, muitos rituais ocos e muitas certezas num mundo profundamente efémero”.

Élia Gonçalves

Aí fui levada para a sala de partos e anestesiada. Uma sala com luz, onde estava sozinha, e por isso mesmo, caso quisesse poderia chamar o meu marido. Passados poucos segundos a epidural começou a fazer efeito e ali fiquei, tranquila e sem dores, à espera que chegasse a altura do meu filho nascer.

Um parto sem dor.

A anestesia foi administrada por volta das 5h da manhã. Pelas 8h liguei ao meu marido a dizer que poderia vir ter comigo. Pelas 9h chegaram familiares e amigos desses familiares, que por cunha puderam entrar na sala de parto. O ambiente estava calmo e eu sentia-me bastante tranquila. A médica voltou a observar-me e disse-me que estava na hora. Pediu-me para fazer força e como percebeu que eu sabia o que tinha de fazer disse-me “vamos tentar fazer um parto com o mínimo de intervenção”, música para os meus ouvidos.

Comecei a fazer força, a médica dizia “é isso mesmo, estás a ir muito bem, continua” e eu sentia-me bem e capaz. Estava tudo tão tranquilo, relaxado e anestesiado, que ao meu lado havia uma conversa tão banal que parecia que estávamos num café. Aquilo começou deveras a chatear-me, enchi-me de coragem e pedi que saíssem. Mal saíram, concentrei-me, e às 10h37 o meu filho nasceu. Num parto tranquilo, relaxado e sem dor.

Levaram-me o meu bebé.

Lembro-me que tudo foi muito rápido, e que aquele momento de conhecer o meu bebé pela primeira vez foi banal. Havia imensa gente à minha volta e o “nosso momento” perdeu-se no tempo.  Apesar dos seus 2,800kg, o Lucas, por ser prematuro, estava a apresentar algumas dificuldades respiratórias, e por isso, acabou por ter de ir para a incobadora.  Sentia-me aérea e tremia por todos os lados devido à anestesia.

Tiraram-me o mundo, eu só queria estar com o meu bebé, senti-lo, cheirá-lo, beijá-lo. Mas não pude. Por causa da anestesia, tive de ficar deitada nas próximas 6h, enquanto o meu bebé estava sozinho na Unidade de Cuidados Intensivos. Passei o tempo todo a chorar e lembro-me de comentarem que estava a descomprimir de todo o processo. Não, não estava a descomprimir, estava a chorar de dor porque não tinha o meu bebé ao pé de mim.

“Roubaram-me o parto.”

Durante muito tempo, este era o sentimento que tinha perante toda a experiência do parto. Leve, suave, tranquilo, mas que me tinham levado o meu bebé. Hoje, e depois da minha experiência na Respiração Holoscópica, o sentimento é outro. Vejo que o meu parto foi aéreo e completamente desconectado da sua essência. Agora reconheço que não estava ali inteira, e que o meu filho passou por tudo sozinho. Pois eu estava anestesiada, pacifica e alienada.

No exercício da Respiração Holoscópica tive a possibilidade de re-contar esta estória a mim mesma, e fazer as pazes com aquilo que vivi.  Sinto que levei 2 anos a processar a minha vivência deste parto, talvez eu seja lenta a processar as coisas, ou talvez esta coisa de querermos tirar as dores e fingir que o parto é um procedimento médico como outro qualquer, atrase o processo de digerir as coisas e aterrar.

Viver a dor permite-nos ser inteiros.

Talvez esta coisa de estarmos constantemente a fugir da dor, de nos querermos anestesiar, seja com medicamentos ou com tarefas, fazer fazer, convívios,  etc, faça com que não vivamos inteiros, enraizados no nosso corpo, e na nossa vida. Procuramos viver vidas perfeitas, estéreis, e por isso alienadas da realidade.

“Queremos a lineariedade e a perfeição, num mundo circular e profundamente caótico”.

Élia Gonçalvez

Quão cruel é não permitir que uma mãe chore a perda de um filho, ou uma mulher a perda do marido, ou de uma jovem a perda dos sonhos? Quão cruel é uma mãe não puder viver o parto do seu filho como deseja? Quão cruel é não dar-mos espaço uns aos outros, e essencialmente a nós próprios, para que possamos sentir a dor? Viver a dor permite-nos ser inteiros, pois ela faz parte da vida, quer queiramos, quer não.🖤

Fotografia por Lieve Tobback

Citações retiradas do livro “O mito de Ophídia” de Élia Gonçalves

4 Comment(s)
  • Marta Posted Junho 14, 2018 5:20 pm

    Obrigada por partilhares a tua história Raquel <3 não sou mãe, mas quando se aborda esse assunto à minha volta sempre manifestei interesse em optar por intervenção mínima – infelizmente a reacção comum é a de "espera até lá chegares" ou "porque se há-de voluntariamente ter dores se há medicação"… não digo que recusarei uma epidural porque não estou a viver esse momento, mas gostava que a decisão de não a ter fosse respeitada e natural. Tal como escreveste, também considero o parto um momento simbólico, um portal. Devia haver mais respeito por esse momento sagrado. Adorei saber da tua experiência mágica na Quinta da Enxara (amei ver as fotos do local que partilhaste no IG) e, sobretudo, que esta te tenha trazido momentos de cura preciosos e de muita descoberta interior <3

    • Raquel Matos Posted Junho 14, 2018 10:01 pm

      Muito grata pelo teu comentário <3 <3

  • Joana Silva Posted Junho 14, 2018 8:52 pm

    Adorei o texto e vou partilhar. Ainda não tive filhos, mas os meus ideais para o parto são muito idênticos aos teus. Além disso, sou terapeuta, mas também sou enfermeira, e a verdade é que não estranho essa”conversa de café” numa situação tão delicada, mas sei que acontece, e já dei por mim a colocar-me do lado do doente e pensar que realmente não é adequado, principalmente numa situação que já de si faz as emoções ficarem um verdadeiro tsunami. Acho importante esta experiência chegar ao maior número de mulheres possível, para que possamos ver a dor como algo que faz parte do nosso crescimento. Grata pela tua partilha. Tocou-me profundamente.

    • Raquel Matos Posted Junho 14, 2018 10:00 pm

      Grata Joana pelo teu comentário. Sentia-me bastante insegura sobre este post. Fico feliz por ter tocado positivamente alguém. <3

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